Por Romeu Corsino**
Universidade Salgado de Oliveira
Um pedreiro
foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio qualificado em Laranjal, no
interior de São Paulo. Durante seu julgamento no Tribunal do Júri local, o réu
permaneceu algemado. A imagem de um homem algemado naquele local era a
presunção de culpa aos olhos dos jurados. Esse foi um dos argumentos usados no
HC movido pelo réu ao STF requerendo a anulação do julgamento. A Corte Suprema
acatou o pedido e anulou a decisão do Júri. Os ministros do Supremo
aproveitaram o caso para justificar a criação da Súmula Vinculante nº 11 em 13
de agosto de 2008, in verbis: "Só é
lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou
de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de
responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de
nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado."
No caso
supracitado, o poder de polícia foi exercido com abuso de autoridade e, por
unanimidade, os Ministros do STF preservaram o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana ao criar a Súmula Vinculante nº 11. Entretanto, há
outros casos de abuso da autoridade policial que não foram contemplados pela
Suprema Corte no sentido de rever a norma em vigor para alterá-la em
conformidade com as garantias individuais da Constituição cidadã.
Um caso
emblemático do uso discricionário do poder de polícia resultando em abuso de
autoridade foi o da escrivã de polícia na zona sul de São Paulo ocorrido em
2009. A escrivã estava sendo investigada
pelo crime de concussão. Ela foi surpreendida por delegados e policiais em seu
local de trabalho, os quais acusaram-na de guardar duzentos reais oriundos de
propina dentro de sua calcinha. Para prendê-la em flagrante, ordenaram que a
funcionária retirasse sua roupa. Com a recusa da escrivã, o delegado que
conduzia a operação tomou a iniciativa e ele próprio despiu à força a mulher
até encontrar a tal quantia em dinheiro no local que se esperava achar. Toda a
operação foi filmada.
Ainda em
2009, o GECEP (Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial)
requereu à Promotoria a apuração do abuso policial. Na ocasião, o Promotor
designado decidiu arquivar o caso, sob a alegação “não há que falar em abuso de
autoridade por parte do delegado (...), pois à polícia será sempre permitido
relativo arbítrio, certa liberdade de ação (...)”.
O
relatório emitido pelo GECEP aponta que no momento da revista, o delegado “algemou
a depoente, com as mãos para trás, e jogou a depoente no chão e, sem sequer
abrir os botões arrancou a calça da depoente. Nisso o dinheiro caiu no chão.
Sem necessidade alguma o delegado abaixou a calcinha da depoente, tendo ela
ficado com a intimidade exposta. A depoente viu que o delegado de polícia da
Corregedoria sorriu enquanto estava desnuda”.
Em 2010, a
escrivã respondeu a processo administrativo e foi exonerada da polícia civil. Somente
em 2011 o delegado que cometeu o abuso foi afastado e isso se deveu ao fato das
filmagens da operação terem sido vazadas na internet, causando indignação na
sociedade. O desfecho do caso para os envolvidos na operação segue indefinido
atualmente.
O caso
acima poderia ter um rumo diferente para o delegado que cometeu o abuso se a
lei pertinente ao fato fosse mais eficaz. O dispositivo que regula o abuso de
autoridade é a Lei 4.898, criada em 09 de dezembro de 1965. A lei veio para
coibir os abusos exercidos pelos militares em pleno regime ditatorial. De 1965
a 2012 muitas transformações sociais ocorreram, mas infelizmente a Lei de Abuso
de Autoridade não acompanhou a evolução social. Foram apenas 2 artigos
modificados em 47 anos de vigência. Isso tem permitido nos dias de hoje uma
interpretação favorável ao agente policial que comete o abuso e a investigação
por vezes acaba arquivada, como no caso da escrivã visto anteriormente.
As lacunas
deixadas por leis que não conseguem acompanhar as transformações sociais
acarretam em interpretações diversas por parte dos magistrados. Na teoria, o
juíz ao analisar o caso concreto deve julgar,
baseando-se nos princípios constitucionais de justiça e nos direitos
fundamentais. Na prática, no entanto, verifica-se costumeiramente uma
interpretação favorável àqueles que estão no poder, seja por riqueza, poder de
influência ou nível hierárquico e desfavorável em relação a grande massa da
população brasileira. José Rainha Jr. sintetiza esse pensamento com a máxima
“aos ricos, o favor da lei, aos pobres, o rigor da lei”.
Devido à
interpretação tendenciosa das lacunas deixadas pela falta de especificidade de
determinadas leis é que se faz necessária a reforma das mesmas para se
adequarem a nova realidade social. A criação da Súmula Vinculante pelo STF para
o uso de algemas resguarda os direitos fundamentais, limitando os juizes a
interpretarem de acordo com tais preceitos. Porém a Lei de Abuso de Autoridade
de 1965 já se mostra ultrapassada e seu texto vem gerado interpretações no
sentido de atender interesses diversos aos princípios norteadores do direito.
Conclui-se
que a súmula editada pelo STF teve um aspecto positivo, posto que limitou o
Poder de Polícia e reprimiu o Abuso de Autoridade. Por outro lado, a própria
lei que estipula o abuso de autoridade, por conta da sua falta de revisão, vem
causando interpretações que acabam rompendo a linha tênue que separa o Poder de
Polícia do Abuso de Autoridade. O resultado disso é exemplificado no caso da
escrivã: um desrespeito à dignidade da
pessoa humana.
* - Trabalho apresentado em 31/05/2012, como uma das avaliações da disciplina de Legislação Penal e Processual Penal Extravagante do Curso de Direito da Universidade Salgado de Oliveira - Campus Niterói/RJ.
** - Bacharelando em Direito.
________
REFERÊNCIA:
TOMAZ, Kleber. MPF quer levar
caso da escrivã despida à força para Justiça Federal. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/06/mpf-quer-levar-caso-da-escriva-despida-forca-para-justica-federal.html
. Acesso em: 31/05/2012.
Filmagens do Caso
da Escrivã
http://www.youtube.com/watch?v=6po6hVQPAyY
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