sexta-feira, 1 de junho de 2012

Poder de Polícia e Abuso de Autoridade: separados por uma linha tênue*


Por Romeu Corsino**
Universidade Salgado de Oliveira

Um pedreiro foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio qualificado em Laranjal, no interior de São Paulo. Durante seu julgamento no Tribunal do Júri local, o réu permaneceu algemado. A imagem de um homem algemado naquele local era a presunção de culpa aos olhos dos jurados. Esse foi um dos argumentos usados no HC movido pelo réu ao STF requerendo a anulação do julgamento. A Corte Suprema acatou o pedido e anulou a decisão do Júri. Os ministros do Supremo aproveitaram o caso para justificar a criação da Súmula Vinculante nº 11 em 13 de agosto de 2008, in verbis: "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado."

No caso supracitado, o poder de polícia foi exercido com abuso de autoridade e, por unanimidade, os Ministros do STF preservaram o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana ao criar a Súmula Vinculante nº 11. Entretanto, há outros casos de abuso da autoridade policial que não foram contemplados pela Suprema Corte no sentido de rever a norma em vigor para alterá-la em conformidade com as garantias individuais da Constituição cidadã.

Um caso emblemático do uso discricionário do poder de polícia resultando em abuso de autoridade foi o da escrivã de polícia na zona sul de São Paulo ocorrido em 2009. A escrivã  estava sendo investigada pelo crime de concussão. Ela foi surpreendida por delegados e policiais em seu local de trabalho, os quais acusaram-na de guardar duzentos reais oriundos de propina dentro de sua calcinha. Para prendê-la em flagrante, ordenaram que a funcionária retirasse sua roupa. Com a recusa da escrivã, o delegado que conduzia a operação tomou a iniciativa e ele próprio despiu à força a mulher até encontrar a tal quantia em dinheiro no local que se esperava achar. Toda a operação foi filmada.

Ainda em 2009, o GECEP (Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial) requereu à Promotoria a apuração do abuso policial. Na ocasião, o Promotor designado decidiu arquivar o caso, sob a alegação “não há que falar em abuso de autoridade por parte do delegado (...), pois à polícia será sempre permitido relativo arbítrio, certa liberdade de ação (...)”.

O relatório emitido pelo GECEP aponta que no momento da revista, o delegado “algemou a depoente, com as mãos para trás, e jogou a depoente no chão e, sem sequer abrir os botões arrancou a calça da depoente. Nisso o dinheiro caiu no chão. Sem necessidade alguma o delegado abaixou a calcinha da depoente, tendo ela ficado com a intimidade exposta. A depoente viu que o delegado de polícia da Corregedoria sorriu enquanto estava desnuda”.

Em 2010, a escrivã respondeu a processo administrativo e foi exonerada da polícia civil. Somente em 2011 o delegado que cometeu o abuso foi afastado e isso se deveu ao fato das filmagens da operação terem sido vazadas na internet, causando indignação na sociedade. O desfecho do caso para os envolvidos na operação segue indefinido atualmente.
 
O caso acima poderia ter um rumo diferente para o delegado que cometeu o abuso se a lei pertinente ao fato fosse mais eficaz. O dispositivo que regula o abuso de autoridade é a Lei 4.898, criada em 09 de dezembro de 1965. A lei veio para coibir os abusos exercidos pelos militares em pleno regime ditatorial. De 1965 a 2012 muitas transformações sociais ocorreram, mas infelizmente a Lei de Abuso de Autoridade não acompanhou a evolução social. Foram apenas 2 artigos modificados em 47 anos de vigência. Isso tem permitido nos dias de hoje uma interpretação favorável ao agente policial que comete o abuso e a investigação por vezes acaba arquivada, como no caso da escrivã visto anteriormente.

As lacunas deixadas por leis que não conseguem acompanhar as transformações sociais acarretam em interpretações diversas por parte dos magistrados. Na teoria, o juíz ao analisar o caso concreto deve julgar,  baseando-se nos princípios constitucionais de justiça e nos direitos fundamentais. Na prática, no entanto, verifica-se costumeiramente uma interpretação favorável àqueles que estão no poder, seja por riqueza, poder de influência ou nível hierárquico e desfavorável em relação a grande massa da população brasileira. José Rainha Jr. sintetiza esse pensamento com a máxima “aos ricos, o favor da lei, aos pobres, o rigor da lei”.

Devido à interpretação tendenciosa das lacunas deixadas pela falta de especificidade de determinadas leis é que se faz necessária a reforma das mesmas para se adequarem a nova realidade social. A criação da Súmula Vinculante pelo STF para o uso de algemas resguarda os direitos fundamentais, limitando os juizes a interpretarem de acordo com tais preceitos. Porém a Lei de Abuso de Autoridade de 1965 já se mostra ultrapassada e seu texto vem gerado interpretações no sentido de atender interesses diversos aos princípios norteadores do direito.

Conclui-se que a súmula editada pelo STF teve um aspecto positivo, posto que limitou o Poder de Polícia e reprimiu o Abuso de Autoridade. Por outro lado, a própria lei que estipula o abuso de autoridade, por conta da sua falta de revisão, vem causando interpretações que acabam rompendo a linha tênue que separa o Poder de Polícia do Abuso de Autoridade. O resultado disso é exemplificado no caso da escrivã: um  desrespeito à dignidade da pessoa humana.

* - Trabalho apresentado em 31/05/2012, como uma das avaliações da disciplina de Legislação Penal e Processual Penal Extravagante do Curso de Direito da Universidade Salgado de Oliveira - Campus Niterói/RJ.
** - Bacharelando em Direito.
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REFERÊNCIA:

TOMAZ, Kleber. MPF quer levar caso da escrivã despida à força para Justiça Federal. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/06/mpf-quer-levar-caso-da-escriva-despida-forca-para-justica-federal.html . Acesso em: 31/05/2012.  
                
Filmagens do Caso da Escrivã
http://www.youtube.com/watch?v=6po6hVQPAyY

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