segunda-feira, 15 de março de 2010

“Segurança Pública" e "Poder de Polícia"*

Breve contribuição conceitual e jurídica:

Segurança Pública

Consiste numa atuação de preservação ou restabelecimento de convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem serem perturbados ou prejudicados por outrem.

É o afastamento, por meio de organizações próprias, de todo perigo, ou de todo mal, que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade, ou dos direitos de propriedade do cidadão. Limitam-se, assim, as liberdades individuais, estabelecendo que a liberdade de cada cidadão, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode ir além da liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a.

É, pois, uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações de criminalidade e de violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei. (Luiz Otavio de Oliveira Amaral)

Diz a Constituição:

"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
[...]
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei."

Poder de Polícia - Polícia

O Poder de Polícia, considerado a manifestação mais antiga do Estado, visa assegurar a ordem, o interesse público, a convivência harmoniosa, a paz pública, a segurança das pessoas e o seu patrimônio, enfim, o cumprimento das leis de uma forma geral.

Direcionada aos cidadãos, indivíduos indiscriminados por meio dos órgãos de segurança pública, costuma se dizer que a atuação de tal poder serve ao público para “servir e proteger”, segundo os princípios do Estado Democrático de Direito.

Conceituado pelo Direito Administrativo e definido pela Lei Tributária, em geral, o Poder de Polícia corresponde “à atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-se aos interesses coletivos” abrangendo tanto atos do Legislativo quanto do Executivo.

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Art. 78 do Código Tributário Nacional)

Como nos ensina a eminente professora Di Pietro, o Poder de Polícia é exercido na área administrativa e na área judiciária, a primeira de caráter preventivo, a segunda de caráter repressivo. Age preventivamente, por exemplo, quando proíbe ou indefere o porte de arma, e age repressivamente quando persegue criminalmente quem for flagrado portando arma ilegalmente. Quanto às ilegalidades de ordem penal, obviamente são os órgãos policiais que atuam em nome do Estado administração no exercício da polícia preventiva e judiciária.

Discricionariedade, auto-executoriedade e coercitividade são as características do Poder de Polícia: A primeira deriva da liberdade que a lei concede para a apreciação da conveniência e da oportunidade quanto ao exercício do poder e à prática de certos atos, ou seja, trata-se da liberdade de decisão para a escolha do melhor momento, do melhor meio, do objeto, etc., para o alcance do resultado mais adequado, eficaz à pretensão do agente público no cumprimento de suas atribuições legais; a segunda, é a faculdade em decidir e realizar os atos necessários, pelos meios próprios, sem a intervenção do Judiciário, de forma que não há necessidade de expedição de mandado judicial para tal exercício; por fim, a terceira, consiste no atributo de força, de exigibilidade legal, de imposição sob pena de sanção, de obrigatoriedade jurídica contra a desobediência, dos atos praticados no exercício do Poder de Polícia.

Por fim, quanto aos limites que se impõem ao exercício do Poder de Polícia, com retaguarda da doutrina mais autorizada, podem-se citar ao menos três:

1. Necessidade – medidas adotadas para evitar ameaças reais ou prováveis de perturbação ou prejuízo ao interesse público;

2. Proporcionalidade – devida relação entre a limitação ao direito individual e o prejuízo a ser evitado, relação juridicamente adequada entre os meios adotados e os fins desejados; e

3. Eficácia – capacidade de realização do fim pretendido.

Os atos administrativos realizadores do Poder de Polícia, como os demais submetidos ao regime jurídico de direito público, possuem atributos legais e elementos de validade.

Todo ato praticado no exercício de função pública chama-se ato administrativo. Os órgãos policiais pertencem à estrutura da administração direta em seus âmbitos, bem como seus agentes, servidores públicos estatutários, policiais de carreira admitidos por concurso público, funcionários incumbidos da realização de atos administrativos no cumprimento das suas atribuições legais.

Quanto aos atributos legais, o primeiro citado pela doutrina é o da presunção de legitimidade e veracidade, ou seja, iuris tantum, salvo prova em contrário, presume-se que o ato administrativo tenha sido praticado pelo agente que possui a devida atribuição legal, e que o objeto e o fato inerentes a este ato são verdadeiros, dotados de fé pública; o segundo, a imperatividade, é o atributo que torna o ato imponível a terceiros, independentemente de sua adesão ou concordância; o terceiro, a auto-executoriedade, trata do atributo que permite a execução do ato pelo próprio órgão público, sem a sua submisão ao Judiciário; o último, a tipicidade, consiste no atributo pelo qual o ato deve corresponder àquelas figuras previamente definidas em lei como aptas à produção de determinados resultados.

Quanto aos elementos, conhecidos também como requisitos, que pressupõem ora a existência legal do ato, ora sua validade jurídica, estão consagrados no Direito brasileiro a partir da Lei nº 4.717/65, cujo art. 2º, ao indicar os atos nulos, menciona competência (atribuição legal), forma (formalidades legais), objeto (conteúdo e efeito jurídico que se produz), motivo (pressuposto de fato e de direito que lhe serve de fundamento) e finalidade (resultado que se quer alcançar), como sendo os cinco existentes.

Com efeito, polícia é um vocábulo grego (politeia) que derivou para o latim (politia), ambos com o mesmo significado: governo de uma cidade, administração, forma de governo.

Diferentemente do conceito de “poder”, a polícia é órgão governamental, presente em todos os países, cuja função é a de repressão ao crime e manutenção da ordem pública, através do uso da força se necessário, fazendo cumprir a lei.

À Polícia incumbem funções exclusivas como a prevenção da criminalidade, bem como a de investigar e apurar os delitos cometidos, quando o policiamento preventivo falha, fornecendo assim subsídios ao Poder Judiciário para que os criminosos sejam devidamente processados, na forma da lei.

Em tese, a Polícia divide sua atuação em Administrativa, que tem por objeto as limitações impostas a bens jurídicos individuais (liberdade e propriedade), exercida principalmente pelos agentes de fiscalização, e de Segurança. Esta se divide em Polícia Ostensiva e Judiciária. A primeira deve agir antes da infração penal (preventiva), e, a segunda, após a prática do fato criminoso (repressiva). Durante a ocorrência criminosa as duas devem agir, seja nas fases da prisão em flagrante, seja na ação controlada da atividade delituosa até na infiltração de agentes, se for o caso.

Os órgãos policiais incumbidos da Polícia Ostensiva (PF marítima e de fronteiras, PRF, PFF, PMs e GMs) atuam preventivamente na preservação da ordem pública, exercendo a vigilância no objetivo de impedir as ações anti-sociais.

Já a Polícia Judiciária é exercida pelas polícias civis dos estados e pela Polícia Federal, órgãos auxiliares da Justiça que têm por finalidade investigar as ocorrências consideradas criminosas com o fim de fornecer subsídios para a efetiva e eficaz persecutio criminis in judicio, com a apuração da responsabilidade penal do suposto autor do fato e o reestabelecimento da ordem pública. A finalidade principal da Polícia Judiciária é a elaboração do Inquérito Policial.

Como órgão auxiliar da Justiça, a Polícia Judiciária recebe esse nome apesar de, logicamente, não possuir jurisdição. Ela auxilia o Judiciário no cumprimento de seus mandados, no apoio aos seus servidores, na defesa e na proteção da sua integridade física e de suas funções, nos atos investigatórios e nas medidas requisitadas pelo Ministério Público e pelo Juiz, etc.

Por fim, a jurisdição pode também ser considerada como área territorial onde o magistrado exerce sua competência, “diz o Direito”. A Autoridade Policial não exerce jurisdição, por isso não possui competência. Com efeito, o Delegado de Polícia, em sua circunscrição exerce suas atribuições, “cumpre a lei”.

* Por Fabio Geraldo Veloso - Professor da Graduação e da Pós-graduação em Direito da Universidade Salgado de Oliveira - Niterói/RJ - Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais.

quinta-feira, 11 de março de 2010

JUSTIÇA*

   Poderíamos mitigar a dimensão da palavra justiça como sendo apenas dar a cada um o que lhe é devido. No entanto, desde o início dos tempos, que o homem se lança na busca de um melhor conceito de justiça, seja para a sua mais equânime aplicação, ou para a proposição de suas reflexões. Ao longo de nossa história, percebemos claramente, que a justiça sempre ficou condicionada a interferência de um terceiro elemento em um conflito. Elemento esse, que poderia ser representado por divindades, sacerdotes, líderes espirituais, chefes tribais, mas que em todos havia a responsabilidade pela aplicação de um conceito de justiça para a resolução de um dado conflito exposto. Até eles, eram levadas as lides, e os atos costumeiramente censurados. E a partir de uma interpretação, fosse ela mediante oráculos, manifestações da natureza, que poderiam significar a ira dos deuses, ou qualquer outra pradronização pré-estabelecida, aplicava-se aquela noção de justiça ao caso concreto. Importante frisar, que a função desse terceiro elemento se estabeleceria no vértice de um triângulo, que teria na base os vértices do elemento causador do dano, e o sujeito que sofreu o dano, que poderia ser substituído pelo prejuízo que determinada comunidade poderia ter sofrido em função de uma conduta reprovável.



   Tempos mais tarde, com o surgimento da filosofia, a explicação e as resoluções dos conflitos, passam a se basear em um outro eixo, pois é notório que a filosofia trouxe o foco das explicações daquilo que tinha base sobrenatural para uma dedução racional. Com essa nova concepção, somada ao surgimento de pensadores como Thomas Hobbes, que em um dado momento identificou a necessidade de formação de um contrato entre indivíduos, em prol da criação de um ente maior, que fosse responsável, primeiramente pela segurança individual, nasce uma explicação para a necessidade do Estado, uma vez que sua preocupação maior era com a violência que, segundo ele, fazia parte da natureza humana. Para Hobbes, os indivíduos ao nascerem deveriam abrir mão dessa violência, e capacidade de reação em favor do Estado, cabendo a ele exercer a segurança, e buscar a pacificação dos conflitos. Quando Jean Jacques Rousseau idealizou o contrato social, sua preocupação já não tinha como base a “violência natural” do homem, e sim a necessidade de organização de um Estado mais organizado, mais igualitário e tendo a liberdade como alicerce. E que viesse a cumprir sua função social, e aplicar a justiça com a maior equidade possível.



   Com a separação dos poderes do Estado, nasce o Judiciário, que seria aquele terceiro elemento, agora oficializado, que, de forma mais precisa, e infalível até, deveria ser o fiel depositário de todas as nossas expectativas. Não só o guardião de uma justiça escrita, fria, e que não cumpre a função a que se propõe. O Estado, como aplicador da justiça, idealizado pela mente de Montesquieu, e que zelava pelas leis, como o de Rousseau, não pode ser representado por um Estado vingador, em que mais se preocupa em punir, do que em resolver as causas que levaram ao delito. A lei puramente escrita, é justiça morta. A justiça só ganhará vida quando a lei escrita puder falar, e for interpretada realmente levando em conta os princípios axiológicos pelo qual motivaram a criação dela, e não apenas sua composição literária. A equidade não pode ser um acessório a disposição do juiz, em que ele faz uso no momento que melhor achar conveniente. Ela deve ser uma substância composta na tinta de sua caneta. Pois a justiça só terá a face perfeitamente lapidada, quando a equidade for seu princípio basilar. Precisamos acreditar que Sólon estava errado ao dizer que: “a lei é como uma teia de aranha. Se algo leve cai nela, ela retém. No entanto, se algo pesado cai, desaba e deixa passar.”



* Por Alexandre da Silva Teixeira, acadêmico do terceiro período do Curso de Direito da Universidade Salgado de Oliveira, campus Niterói/RJ.

terça-feira, 9 de março de 2010

AUXÍLIO RECLUSÃO - Comentem...

"O auxílio-reclusão é um benefício devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto. Não cabe concessão de auxílio-reclusão aos dependentes do segurado que estiver em livramento condicional ou cumprindo pena em regime aberto.

Para a concessão do benefício, é necessário o cumprimento dos seguintes requisitos:

- o segurado que tiver sido preso não poderá estar recebendo salário da empresa na qual trabalhava, nem estar em gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço;

- a reclusão deverá ter ocorrido no prazo de manutenção da qualidade de segurado;

- o último salário-de-contribuição do segurado (vigente na data do recolhimento à prisão ou na data do afastamento do trabalho ou cessação das contribuições), tomado em seu valor mensal, deverá ser igual ou inferior aos seguintes valores, independentemente da quantidade de contratos e de atividades exercidas, considerando-se o mês a que se refere:

PERÍODO SALÁRIO-DE-CONTRIBUIÇÃO TOMADO EM SEU VALOR MENSAL

De 1º/6/2003 a 31/4/2004 R$ 560,81 - Portaria nº 727, de 30/5/2003

De 1º/5/2004 a 30/4/2005 R$ 586,19 - Portaria nº 479, de 7/5/2004

De 1º/5/2005 a 31/3/2006 R$ 623,44 - Portaria nº 822, de 11/5/2005

De 1º/4/2006 a 31/3/2007 R$ 654,61 - Portaria nº 119, de 18/4/2006

De 1º/4/2007 a 29/2/2008 R$ 676,27 - Portaria nº 142, de 11/4/2007

De 1º/3/2008 a 31/1/2009 R$ 710,08 – Portaria nº 77, de 11/3/2008

De 1º/2/2009 a 31/12/2009 R$ 752,12 – Portaria nº 48, de 12/2/2009

A partir de 1º/1/2010 R$ 798,30 – Portaria nº 350, de 30/12/2009

Equipara-se à condição de recolhido à prisão a situação do segurado com idade entre 16 e 18 anos que tenha sido internado em estabelecimento educacional ou congênere, sob custódia do Juizado de Infância e da Juventude.

Após a concessão do benefício, os dependentes devem apresentar à Previdência Social, de três em três meses, atestado de que o trabalhador continua preso, emitido por autoridade competente, sob pena de suspensão do benefício. Esse documento será o atestado de recolhimento do segurado à prisão .

O auxílio reclusão deixará de ser pago, dentre outros motivos:

- com a morte do segurado e, nesse caso, o auxílio-reclusão será convertido em pensão por morte;

- em caso de fuga, liberdade condicional, transferência para prisão albergue ou cumprimento da pena em regime aberto;

- se o segurado passar a receber aposentadoria ou auxílio-doença (os dependentes e o segurado poderão optar pelo benefício mais vantajoso, mediante declaração escrita de ambas as partes);

- ao dependente que perder a qualidade (ex.: filho ou irmão que se emancipar ou completar 21 anos de idade, salvo se inválido; cessação da invalidez, no caso de dependente inválido, etc);

- com o fim da invalidez ou morte do dependente.

Caso o segurado recluso exerça atividade remunerada como contribuinte individual ou facultativo, tal fato não impedirá o recebimento de auxílio-reclusão por seus dependentes.

Como requerer o auxílio-reclusão

O benefício pode ser solicitado por meio de agendamento prévio, pelo portal da Previdência Social na Internet, pelo telefone 135 ou nas Agências da Previdência Social, mediante o cumprimento das exigências legais.

Importante: Se foi exercida atividade em mais de uma categoria, consulte a relação de documentos de cada categoria exercida, prepare a documentação, verifique as exigências cumulativas e solicite seu benefício.

Dependentes
Esposo (a) / Companheiro (a)
Filhos (as)
Filho equiparado (menor tutelado e enteado)
Pais
Irmãos (ãs)
Segurado (a) contribuinte individual e facultativo (a)
Segurado (a) empregado (a)/ desempregado (a)
Segurado (a) empregado (a) doméstico (a)
Segurado (a) especial/trabalhador (a) rural
Segurado (a) trabalhador (a) avulso (a)

Valor do benefício

O valor do auxílio-reclusão corresponderá ao equivalente a 100% do salário-de-benefício.

Na situação acima, o salário-de-benefício corresponderá à média dos 80% maiores salários-de-contribuição do período contributivo, a contar de julho de 1994.

Para o segurado especial (trabalhador rural), o valor do auxílio-reclusão será de um salário-mínimo, se o mesmo não contribuiu facultativamente.
[...]
Legislação específica
Lei nº 8.213, de 24/07/1991 e alterações posteriores;
Decreto nº 3.048, de 06/05/1999 e alterações posteriores;
Instrução Normativa INSS/PRES nº 20 de 10/10/2007 e alterações posteriores."


sexta-feira, 5 de março de 2010

Pesquisa comprova o que já era notório: PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA É IGNORADA PELOS TRIBUNAIS

Do Jornal do Commercio

01/03/2010 - "Os tribunais estão violando sistematicamente a presunção de inocência. É o que demostra relatório publicado pelo Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association (IBAHRI). O dossiê, intitulado Um em cada cinco: a crise do sistema prisional e de justiça criminal no Brasil, deixou claro que o encarceramento tornou-se uma rotina no País, mesmo para aqueles acusados de furto - crime considerado de menor gravidade, já que não envolve o uso de força ou violência. Segundo o estudo, em alguns tribunais, mais de um terço das pessoas detidas sob a acusação de tal crime tinham passado mais de 100 dias privadas de liberdade, e muitas passaram mais tempo presas provisoriamente do que passariam cumprindo a pena eventualmente recebida.

O relatório - que foi divulgado na sexta-feira, em São Paulo - mostra uma série de estudos já realizados no País, que comprovam as precárias condições do sistema carcerário. Os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por fiscalizar e estabelecer as diretrizes do planejamento estratégico do Judiciário, mostram que um em cada cinco detidos no Brasil, em prisão cautelar, está sendo mantido preso indevidamente.

O estudo mostrou que o uso da prisão provisória variou significativamente em diferentes partes do País e parece estar relacionado a uma série de fatores subjetivos, tal como a atitude de certos juízes. Enquanto em Porto Alegre, no sul do Brasil, o índice de encarceramento de pessoas presas em flagrante para esse crime foi de cerca de 30%, tal índice subiu para 90% na cidade de Belém, no norte do Brasil, compara o estudo.

De acordo com o relatório, a tendência geral no sistema de justiça criminal brasileiro é a de condenar mais acusados à prisão do que libertar, o que tem provocado o excesso da capacidade do sistema penal, já superlotado. O documento mostra que um enorme acúmulo de casos foi gerado, levando ao aumento de atrasos no sistema judicial, sendo que mais de 80% dos presos não podem pagar um advogado.

Os problemas, segundo o relatório, persistem, apesar dos inúmeros tratados internacionais ratificados pelo Brasil que têm como objetivo a proteção dos Direitos Humanos e a criação de órgãos com vistas justamente à consolidação dessa proteção. Devido à incompetência burocrática ou falhas sistêmicas, muitas pessoas estão presas irregularmente, passam anos em prisão provisória ou permanecem na prisão após o término do respectivo período. A superlotação extrema, condições sanitárias precárias, violência entre organizações criminosas e motins deterioram o sistema prisional, onde os maus-tratos, incluindo espancamentos e tortura, são comuns, constata o relatório.

O governo brasileiro está deixando muito a desejar no cumprimento das obrigações constitucionais que garantem os direitos humanos aos quais todos os brasileiros têm direito. A crise corrente também está se tornando uma preocupação de segurança pública, que vem de encontro com as tentativas do estado de reduzir a criminalidade, diz Juan Mendez, presidente do IBAHRI.

Presos

A população de presos no Brasil é a quarta maior do mundo. Em setembro do ano passado, havia 472.482 pessoas presas. Destes, 264.940 eram presos condenados e 207.542 (44%) estavam sendo mantidos em regime de prisão provisória. De acordo com o instituto internacional, o número de presos no Brasil está aumentando rapidamente. Em 1995, havia em torno de 106.512 presos condenados e 42.248 detentos em prisão provisória. Isso significa que o número total de presos mais do que triplicou, e o número de detentos em prisão provisória mais do que quadruplicou nos últimos 14 anos.

O relatório também destaca os problemas estruturais dos tribunais. Os tribunais também estão sobrecarregados com o número de casos com os quais têm de lidar. Há um grande acúmulo de processos, o que tem levado a atrasos crescentes na condução dos julgamentos.

O documento faz um apanhado de todas as iniciativas desenvolvidas pelo Judiciário, pelo Executivo e pela sociedade, com vistas a melhorar as condições de cárcere. Nesse sentido, destacou os mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça, que possibilitaram a libertação de pessoas presas indevidamente, e as iniciativas que visam a fomentar a advocacia voluntária, como forma de compensar a falta de defensores públicos.

Em novembro de 2009, o CNJ anunciou que, após examinar 83.803 casos, os mutirões libertaram 16.466 pessoas que estavam presas irregularmente. Tal número equivale a quase 20% do volume total de casos por eles examinados, ou um em cada cinco presos provisoriamente, sugerindo que o problema é extremamente sério em todo o País. Outros 27.644 detentos foram considerados mantidos em níveis de segurança inadequados. Os mutirões descobriram centenas de indivíduos que haviam passado muito mais tempo presos provisoriamente do que eles poderiam ter passado como presos condenados, diz."

terça-feira, 2 de março de 2010

Entrevista da Revista Carta Capital com o jurista Fábio Konder Comparato (Especial 2010 - edição 578)

"CartaCapital: O fato de escândalos virem à tona hoje seria sinal de uma melhora no País? O sistema jurídico funciona a contento?

Fábio Konder Comparato: Eu descobri, num conto de Machado de Assis, a explicação que sempre procurava sobre o caráter nacional brasileiro. O conto é “O Espelho” e trata-se de alguém que numa roda de amigos afirma com espanto geral que cada um de nós tem duas almas. Tem uma alma externa que é aquela sempre mostrada ao público e, muitas vezes, é utilizada para nos julgarmos. E tem uma alma interna que é sempre escondida e serve para nós julgarmos o mundo de dentro para fora.
O nosso sistema jurídico político de fato tem duas almas, ele é dúplice em ambos os sentidos da palavra: é dobrado e dissimulado. Existe a alma externa que pode ser resumida no princípio de que todos são iguais perante a lei, mas existe a alma interna que não sustenta, mas está plenamente convencida de que há sempre alguns que são mais iguais do que os outros.


CC: O senhor poderia dar um exemplo?

FKC: Os exemplos abundam. Nesse particular, gostaria de lembrar mais um exemplo literário. Nas memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, três senhoras vêm à casa do Major Vidigal, que era o chefe de polícia, para pedir a condescendência dele em relação a um jovem soldado. O major fecha a carranca e diz que não pode fazer nada porque existe uma lei. Uma das senhoras diz: “ora a
lei, a lei é o que senhor major quiser”. Então, completa o Manuel Antonio de Almeida: “o major sorriu-se com cândida inocência”. É um pouco isto.
A lei existe, em princípio, igual para todos. Mas sabemos. Como no último caso do “Arrudagate” em Brasília, a lei penal dificilmente se aplica ou não se aplica a todos aqueles que estão no poder. É exatamente isso que explica o fato de termos uma Constituição modelar, mas a nossa vida política estar muito longe do modelo constitucional. A Constituição se abre com a declaração de que a República Federativa do Brasil é um estado democrático de Direito e, na verdade, nós não temos nem República, nem Democracia, nem Estado de Direito.

CC: Por que não?



FKC: No Brasil não existe a consciência de bens públicos. Quando um bem não é propriedade particular de alguém, ele não pertence a ninguém. Então, a grilagem de terras públicas e a utilização de canais de comunicação, com o espaço público usado para a defesa exclusiva de interesses privados, é a regra geral. Um outro exemplo que todos conhecem no exercício dos cargos públicos: existe uma regra de ouro (uma referência moral): ‘Mateus, primeiros aos teus’. Quanto à democracia, a nossa alma interior, para voltar à comparação inicial, é e sempre foi a oligarquia. Povo não existe porque, a rigor, ele só passa a ter consciência dele mesmo nas grandes disputas futebolísticas. Fora disso, o povo não tem consciência de que ele existe, de que é digno e merece ser tratado com respeito.
Numa democracia, a norma ou conjunto de normas supremas que é a Constituição, obviamente, tem que ser aprovada pelo soberano. A soberania do povo é o supremo poder de controle. Mas nenhuma Constituição brasileira, até hoje, foi aprovada pelo povo. A atual Constituição já foi remendada 68 vezes, o que dá a apreciável média de mais de três remendos por ano. Em nenhuma dessas ocasiões chegou-se sequer a pensar em consultar o povo. Já não digo pedir a aprovação. E o Estado de Direito? Vou dar um exemplo gritante: os controles jurídicos sobre os poderes do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público são muito débeis, em alguns casos totalmente inexistentes.
Um exemplo atual com relação ao Ministério Público Federal: em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados de Brasil (OAB), por uma proposta minha, decidiu ingressar com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no STF objetivando a definição, pelo tribunal, sobre a abrangência da lei de anistia de 1979. Ela beneficia ou não os homicidas, torturadores, estupradores do regime militar? Pela lei que rege essa demanda, o Ministério Público, quando não é o arguente, tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria Geral da República foi intimada no dia 2 de fevereiro de 2009 a se manifestar e, até hoje, mais de dez meses depois, não devolveu os autos. Em agosto desse ano eu fiz uma petição ao relator, pedindo a ele que mandasse requisitar os autos. Essa petição não foi sequer despachada porque os autos não estavam no STF.
Ora, existe uma lei que regula os casos de improbidade administrativa. Um deles é deixar de praticar ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei. Acontece que esta ação de improbidade administrativa é proposta unicamente pelo Ministério Público. Então, o que pode fazer a OAB? Representar à Procuradoria Geral da República dizendo que o seu chefe cometeu uma improbidade administrativa?[...]"